quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Baixinho Invocado!

Medina & anão

Era uma vez uma porção de coisas que acho muito bom que cuidem de não esquecer e que, para isto, as enumero: um bar, um espelho, um gordo homem alto, um copo, um cálice, um magro homem baixo, um garçom, um soco, uma briga, uma cerveja, um conhaque, uma rua, uma mulher, uma bronca, uma paquera, uma agressão, uma pausa,um revide.

Era uma vez uma porção de coisas que, após enumeradas como o foram, devem imediatamente ser colocadas na ordem justa e devida, para evitar maiores danos à cabeça de quem lê e que, se for desequilibrado como imagino, deve estar roxo para saber o significado do bar, do espelho, do gordo homem alto, do -copo, do cálice, do baixo homem magro, etc.

Primeiro, tomemos para cenário o bar com o espelho ao fundo e um garçom de intermeio, eliminando, desta forma, três das várias coisas citadas no era-uma-vez da estória.

Neste cenário entrou o homem alto e gordo que se sentou na cadeirinha do bar, pedindo um conhaque num cálice pequeno, e se escondendo atrás de um jornal que exibia as manchetes habitualmente enganadoras.

Seguiu-se, então, a entrada do homem baixo e magro que, seguindo o contraste, comandou uma cerveja num copo longo. Por minutos nada mais aconteceu naquele bar, a não ser uma imagem que lembrava a pontuação exclamativa espanhola. De um lado, um ponto de exclamação ao inverso: um homem alto tendo, em cima, um pequeno cálice; do outro lado, a pontuação admirativa normalmente posta: um copo longo e, sob ele, o homem curto.

Então, de repente, surgem na estória vários dos pontos de venda citados no início e que me permito repetir para que não se percam hora alguma: uma rua, uma mulher, uma paquera, uma agressão, uma briga.

Da briga, cuidamos em seguida. Através do espelho o homem viu, detrás do jornal, o homem enorme. Num pulo de gato arrancou-lhe o jornal da mão, colocando, no nariz do homem enorme, seu pequenino dedo de homem curto.

— Pensou que nunca ia me encontrar, não é, seu cavalão cretino? — esbravejou o pequenino, sem obter nada em resposta, a não ser uma atenção mais cuidada por parte do garçom que, boquiaberto, não esqueceu de abrir a boca para ficar realmente boquiaberto (uma vez que é muito comum chamarmos de boquiaberto os que estão unicamente estupefatos).

— Sabe quem eu sou? Não diga que não sabe, que você sabe muito bem quem eu sou

— perguntou e respondeu o homem pequenino demonstrando uma auto-suficiência para o diálogo simplesmente alarmante. — Eu sou o Jurinha.

Como ainda desta vez não tivesse motivado o homem enorme para a briga, o pequenino levantou da alta cadeira em que estava, ficando, assim, menor do que já era, porque, de tão pequeno, ele, sentado, era maior do que em pé.

— Eu sou o marido da Helena, seu safado — apresentou-se o pequenino na ponta dos pés, posição que não era cômoda, porém facilitava a aproximação do seu dedo em riste se não do nariz do homem enorme, pelo menos do seu umbigo — parte do corpo de aparente inutilidade, mas de periculosidade desmedida. — Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, seu palhaço?

O homem enorme mantinha-se calado como o cálice de conhaque que já nem tocava. E o homem pequenino (incríveis, esses dois homens!) não fazia por onde amortecer sua ira. "Como era possível caber uma cólera tão grande num homem tão pequenino?" devia estar pensando o garçom durante o tempo em que, assistindo à pendenga, limpava o salão porque de noite tinha festa.

— Minha mulher não pode passar na rua, que você vai atrás dela dizendo gracinhas e fazendo propostas indecentes. Com mulher de homem não se facilita, está ouvindo? Está sabendo, bicho? — perguntou o pequenino, numa inflexão absolutamente Ipanema, que contrastava sobremodo com seu porte Lilliput.

A cerveja dormia no copo alto, o conhaque esfriava no cálice miúdo, o garçom colocava sob o balcão o produto colhido entre a boca e os olhos, e o homem pequenino, crescente de fúria, cresceu de estatura, subindo no travessão que serve de apoio para os pés. Com isto, conseguia atingir a altura do peito do homem enorme, com seu dedo que nem se via de tanto que se agitava num incitamento exasperado.

— Vou lhe dar uma surra que você nunca mais vai esquecer. Pensa que só porque você é grande e eu sou pequenininho, você pode fazer e acontecer aqui na rua? Pensa que eu vou botar o galho dentro? Pensa que eu tenho medo de você, seu babaquinha? Pra mim, maior o pau, maior a queda. Dou-lhe um soco só e você, cada vez que lembrar do soco, vai cair de novo! — berrava o homenzinho pequeno de ódio tão comprido. — Fala um troço aí. Diz uma sílaba. Fuma! Pega nesse cálice. Cale-se! — ordenou ao homem enorme que permanecia calado.

Não era uma cena que se possa ver freqüentemente e, por esta razão, o homem pequenino fez a pausa enumerada no início da estória para conseguir um efeito dramático mais de acordo. Feita a pausa, vamos nós.

— Mulher do Jurinha ninguém paquera, porque o Jurinha é fogo no jirau. O Jurinha bate por baixo, pra ver você cair de cima. O Jurinha é bom de pernada e de bolacha, ouviu, seu bobo alegre, paspalho, vagabundo, cafajeste, cachorro vira-lata, vaca de presépio, bode expiatório, cavalo de corrida, gato de hotel, mosca morta, galinha comeu, rato de gaveta, rabo de arraia, cabra da peste, leão-de-chácara, vaca foi pro brejo, galo de briga, peru de pôquer, rã à doré, pé de pato, mão de onça, serra das araras. Depois das zoológicas ofensas que conseguiu recordar para desfeitear seu êmulo, o homem pequenino calou-se. Das coisas enunciadas, ficou faltando o soco para que a estória se finde.

Foi o que o homem enorme deu na cabeça do pequenino. Um só, de cima para baixo, que lhe provocou a morte instantânea, por hemorragia interna e fratura do occipital. Que estória decepcionante!

Fonte: O funeral da vaca - Chico Anísio

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