
Breve resumo do causo: Primavera Clube, foi um clube situado numa cidadezinha próximo ao Rio de Janeiro. Tão pequena e tão falida que a única fabrica que existia lá, empregava praticamente todos os moradores. Para amenizar a falência seu ex-dono resolveu deixar a estrutura pro povo fazer um clube e se divertir com alguma coisa. Visto que neste período nem menino nascia fazia 7 anos. Devido à criação do clube, e as peladas criadas, foi surgindo ai um verdadeiro Campeão de Várzea. O time do Primavera Clube, era nos anos de 50 o maior campeão invicto em mais de 40 partidas. Não perdia nem pros reservas do Botafogo e Vasco que lá treinavam algumas vezes. Tava tão famosa na época que nenhum clube mais da região conseguia abatê-los.
Até que um time da cidade de Pau Grande resolveu chamá-los pra uma disputa dominical, daí desenrola a história a seguir. :
"Estádio lotado. Com as rendas conseguidas pelo Primavera, o dinheiro, se não era farto, pelo menos não era falto, em Hortênsia. Para o tamanho da cidade a platéia era de regular para boa e o tempo apresentava-se propício para a prática do esporte bretão (desculpem eu não ter podido me conter). Havia mais de quinhentos espectadores. A esmagadora maioria portando vistosas bandeirolas verdes com estrela branca.
O jogo foi surpreendente. O Primavera tentou impor o seu ritmo, mas o rapaz das pernas tortas estava, realmente, com o diabo no corpo. Ameaçava sair por um lado, saía pelo outro, jogava a bola no meio das pernas de Urbano — logo de Urbano, imagine! —, pegava do outro lado. Ao terminar o primeiro tempo o time de Pau Grande levava três gols de vantagem. Waldemar, o goleiro, não queria voltar para o tempo final.
— Ou vocês acertam aquele tortinho ou eu não volto, que eu sou um homem de idade e não estou aqui pra ser desrespeitado.
— Aquele cara é um demônio.
— Se é demônio, manda pro inferno.
— Calma — pedia Painho, mais preocupado do que todos. — No segundo tempo a gente reage.
— Só se for no tapa. Com aquele tortinho fazendo o que vem fazendo, isso não acaba nem em sete, nem em oito. A gente apanha é de vinte.
Severo, a quem cabia a marcação sobre o tal tortinho, já estava de roupa mudada.
— Botem outro no meu lugar que eu tenho que ir visitar um parente em Piabetá.
— E o segundo tempo?
— No primeiro tempo eu joguei os dois — e deu uma banana para os que ficavam.
—Aleijado. . . aleijado é vocês! Aquele tortinho é um exu.
Severo, no entanto, acabou ficando. Bastou Painho impor a força de um argumento para que as idéias se mudassem.
— Ou volta todo o mundo ou eu fecho o clube e suspendo a ajuda monetária.
Voltaram. O torto entortou ainda mais. Fez gol de letra, chutou de curva — coisa que até aquele dia nunca se soubera ser possível fazer —, deu passe de calcanhar, meteu gol de córner direto — olímpico, como dizem os locutores de louvável variedade vocabular.
Em síntese: um desastre total, catastrófico, apocalíptico, caótico, ridículo. A contagem não chegou a dez por desinteresse do time do tortinho. O representante da federação dava gargalhadas. Devia ter sido brincadeira tudo o que contavam desse time imbatível. Pode ser imbatível um time de onze que perde para um jogador apenas? E um jogador como aquele, de pernas que pareciam não se conhecer, tanto que uma se punha para leste e a outra para oeste? O homem da federação só não achou ter perdido a viagem porque seus olhos, que tinham ido a Hortênsia com a determinação de se pôr no time de verde, por deleite e gozação paravam no rapaz a quem chamavam Mane.
Ninguém contava com o que aconteceu mas de Painho, em Hortênsia, sempre se esperou tudo. Ele sentiu que a honra do Primavera estava sendo vilipendiada por um "aleijadinho" desajeitado. Tudo era admissível, menos a humilhação. O juiz não é a autoridade máxima? Não tem o comando absoluto? Não é soberana a sua decisão? E o juiz não era ele, Painho? Pois muito bem. Ele iria tomar uma atitude. Espezinhar seu clube, nunca! Tripudiar sobre uma novel agremiação social-esportiva de feitos históricos, jamais! Ninguém perdia por esperar.
A bola estava na linha média do Primavera, como sempre obediente aos pés de passarinho do rapaz de pernas tortas. E soou o apito do juiz. Ninguém entendeu. Falta, não houvera. Toque, muito menos, que a bola estava amarrada ao pé do tortinho. Pé é pé, mão é mão. Impedimento, nem pensar, se na área do Primavera estavam sete defensores do clube verde, tremendo na expectativa de mais uma arrancada daquele aleijado filho da mãe. Mas o juiz apitou, que todo o mundo ouviu. Mas por quê?
Painho, passos curtos e decididos, foi ao centro do campo, chamou Urbano, capitão do Primavera, ergueu seu braço como se faz com os boxadores e, fazendo sua voz aguda e penetrante ser escutada em todo o estádio, berrou com certo orgulho e olhar desafiante propositadamente posto no olhar espantado do homem da federação:
— Primavera ganhou por pontos!
E todos se retiraram do campo de jogo sem, pelo menos, cumprimentar o homem da federação e, muito menos, o rapaz de pernas tortas chamado Mane, que, antes de se dirigir ao caminhão que o levaria de volta a Pau Grande, sua cidade, num gesto de grande desportividade, fez questão de cumprimentar, um a um seus vencidos adversários:
Até outro dia, João; até logo, João; desculpe, João; obrigado, João; parabéns, João; até mais, João; disponha sempre, João; adeus, João.
Cara engraçado, esse Mane de pernas tortas! Gente boa. E nunca mais se ouvir falar nele."
Fonte: Batizado da Vaca - Chico Anisio
Nenhum comentário:
Postar um comentário